quarta-feira, 10 de junho de 2009

Folhas - Letras & outros ofícios nº 12

ERA ASSIM NA BEIRA-MAR…



Sou filho duma simbiose difícil: nasci na freguesia da Glória, ao que me dizem ali para os lados da travessa de São Martinho, mas filho de pai "cagaréu", marinheiro, e de mãe "ceboleira".
Já lá vão os tempos em que se roubavam os andores, se apedrejavam os namorados das freguesias rivais, se ridicularizavam, reciprocamente, as referências caracterizadoras dos nascidos na Vila Velha, a Glória, e na Vila Nova, a Vera-Cruz.
Sou simbiose disso tudo: fruto do salgado do peixe maila cebola e a chanfana.
E, por isso mesmo, quando olho para a freguesia onde nasci — a Glória — não sou capaz de nela pensar sem deixar de também me sentir vestido de camisa de linho branco e de manaia azul, roupas próprias do marnoto da Vera-Cruz.

***


Os meus pais casaram-se ainda nos tempos em que existiam diferenças profundas entre as gentes da Beira-Mar e da Glória.

Em casa da minha avó materna, na Glória, comia-se numa mesa como as de hoje, e as pessoas sentavam-se à sua volta em cadeiras normais. Cada conviva tinha os seus pratos, um ladeiro e um sopeiro, o seu copo, os seus talheres, o seu guardanapo. Vivíamos num primeiro andar, com soalho de madeira. A cozinha era uma divisão separada da sala de jantar.



Em casa da minha avó paterna, na Beira-Mar, uma casa térrea situada na então chamada rua de São Roque, comia-se, normalmente, numa cozinha de chão batido, coberto de junco fresco, frequentemente renovado, que deitava um cheirinho que era um regalo. Num canto ficava a lareira onde estava uma grande panela de ferro, de três pés, cheia de água permanentemente aquecida por um brasido que o meu avô Ti Luís, sentado num banco corrido encostado à parede, ia alimentando com imenso carinho. Era ele quem normalmente cozinhava.

Jamais esquecerei as caldeiradas que ele preparava, em banho maria, com o desvelo inexcedível próprio de quem tinha andado ao mar e ao rio, na sempre sofrida arte da pesca. O peixe tratado por quem o apanhou sempre foi objecto de cuidado que o leigo não domina. É que quem foi pescador sabe dar um valor acrescentado aos mimos que o mar dá. Desde o amanhar ao temperar de sal, desde o colocar, em camadas, as rodelas das batatas e das cebolas até ao esmero dos últimos condimentos que só ele conhecia, tudo isso obedecia a um ritual que era muito seu. O cheiro que se desprendia da panela era o melhor convite para nos aproximarmos da mesinha baixa colocada no meio da cozinha. E sentarmo-nos à sua volta, nos mochos, cada um com o seu talher, à espera que a minha avó Guilhermina trouxesse a bacia onde previamente, com a “escumadeira”, colocara, com imenso cuidado, a caldeirada. O meu avô ti Luís, com as dificuldades de quem é manco levantava-se, então, da lareira e ocupava a cadeirinha baixa que a minha avó já lhe tinha ajeitado. Depois sentava-se ela, separada do meu avô só pelo “palhinhas” com a sua litrada de tinto que ela colocara no chão e que servia aos dois.

Procurando copiar com enorme zelo todos os gestos dos meus avós e do meu tio, irmão de meu pai, que gostava muito de mim e me conduzia naquele mundo da Beira-Mar a que não estava habituado, arriscava avançar com o meu garfo em direcção à bacia, tirando o conduto do quinhão que me tocava.



Relembro tudo isto com uma saudade que me emociona sempre.

Quando o meu avô levava à boca o “palhinhas” para emborcar o seu golo de tinto, todos paravam de retirar comida da bacia. Só se recomeçava a comer quando ele voltava a pôr sobre o junco o pequenino garrafão. Enquanto ele bebia, ninguém tocava na caldeirada.
Estas paragens, ao princípio, metiam-me engulhos. Não descansei enquanto não ganhei coragem para perguntar porque se parava de comer sempre que o avô se servia do “palhinhas”.
E foi a avó Guilhermina quem deu a explicação. “É fácil de compreender, meu menino; enquanto qualquer um dos avós bebe, os outros param para que uns não comam mais do que os outros.”

Calei-me. A explicação tinha uma lógica irrefutável. E, no fundo, revelava um fortíssimo sentido de solidariedade, de comunhão, tão próprio das gentes da borda de água. Das gentes que dependiam da Ria e do Mar e que sabiam alimentar, com as dificuldades da vida, uma enorme e profunda irmandade.


Gaspar Albino,

17 de Maio de 2009

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