domingo, 15 de novembro de 2009

Chuva - Manuel Ferreira Rodrigues

Chuva

não sei se algum dia te disse, gosto de todas as estações do ano, mastenho uma afeição extrema pelos períodos de transição. de mudança.especialmente quando o outono ainda não é outono e já não suporto ocalor-sempre-calor do verão. quando sinto que as primeiras andorinhassão promessa de dias inteiros sem nuvens, sem frio e sem chuva —aquela irritante chuva muda de Fevereiro —, e os campos se vestem demil verdes e as flores brotam até das rochas.

quando chegam as primeiras chuvas do fim do verão desfruto de um dosmaiores prazeres: sentir o aroma da terra molhada, o perfume picanteque emana de toda a parte e me inebria, o odor húmido que se libertaainda quente da relva dos jardins, do asfalto mal lavado pelas bátegasda noite anterior, das paredes das casas exibindo as marcas dasúltimas invernias. é um aroma, sim. é de aroma que se trata. de umolor, de uma essência odorífera, de uma fragrância rebelde. e aqui,onde vivo, essas exalações misturam-se com a maresia, trazida pelasgaivotas brancas que invadem a cidade em círculos, confundindo mar eterra, neste tempo de transição. de mudança.

e a luz, uma luz coada e doce, que se intromete entre dois cirrosvigilantes no silêncio azul do céu, mostra todas as suas cambiantesneste final de tarde. neste outono-ainda-verão. há pouco, quandocomecei a escrever-te, uma luz de mel, pastosa, quase líquida, deitava-se como um manto ocre sobre o casario pintado na tela luminosa daminha janela. agora, uns farrapos cinzentos cobrem a paisagemanunciando a chegada da noite. espero. o cinza escuro do céu desvanece-se e logo de seguida, lentamente, uma névoa fina e dourada recobretoda a paisagem.

escrevo. a névoa adensa-se e atenua-se a luz enigmática de há pouco. achuva cai mais ruidosa, enquanto a névoa se dissipa. adoro este tempoque tudo muda. que me muda. adoro, como te disse, os períodos detransição. de mudança. por isso gosto do fim do dia.

agora, a chuva cai em surdina. fecho a janela. o calor no quarto éinsuportável. abro-a de novo e fico quieto. muito quieto. um friomarinho entra no meu quarto. uns pingos rebeldes chegam trazidos pelovento e denunciados pelo sussurro rouco das goteiras, com saudades dachuva. uma luz estranha, enigmática, dourada, mostra-se de novo.vivamente. a luz, neste momento, tem uma intensidade acobreada.delicada. única.

desvanece-se depois, quando se vêem os primeiros candeeiros lá aofundo. na cidade. a noite vai chegando. débil, a luz de um sol já semforças, morre lá longe.

por fim, o céu escurece. um vento forte fustiga agora as árvores quese despem de folhas e de pássaros. chegou a noite. outra noite. estanoite. com chuva.

Manuel Ferreira Rodrigues

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